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Indígenas exigem respeito à sua cultura em políticas anticoronavírus no Brasil

A COVID-19 coloca os indígenas da Amazônia brasileira diante da encruzilhada entre permanecerem na aldeia, com poucos recursos médicos, ou irem para a cidade, arriscando-se a serem infectados e ao desarraigamento cultural de não poderem celebrar um necessário ritual fúnebre

AFP
09/07/2020 às 18:26.
Atualizado em 25/03/2022 às 23:58

A COVID-19 coloca os indígenas da Amazônia brasileira diante da encruzilhada entre permanecerem na aldeia, com poucos recursos médicos, ou irem para a cidade, arriscando-se a serem infectados e ao desarraigamento cultural de não poderem celebrar um necessário ritual fúnebre.

Lucita Sanoma viveu esta violência na pele em 25 de maio, quando seu bebê de dois meses faleceu e foi enterrado com suspeita de coronavírus em Boa Vista, a mais de 300 km de seu lar, sem que ela estivesse ciente.

O enterro imediato, adotado no Brasil como medida sanitária em casos confirmados ou sob suspeita de Covid-19, contraria a cultura yanomami, cujo ritual fúnebre é comunitário e transcorre em várias etapas, durante meses e anos. O corpo é deixado por duas semanas na floresta. Depois, os ossos são cremados e as cinzas, guardadas em uma urna, que, tempos depois, será enterrada.

As autoridades "têm que entender e respeitar a questão cultural", afirmou o líder indígena Mauricio Yekuana, em alusão a Lucita e outras três mães confrontadas com o mesmo drama.

"Eu quero levar o corpo do meu filho de volta pra minha aldeia (...), Precisamos chorar juntos", disse Lucita à AFP através de um intérprete.

Pequena, com os cabelos pretos caídos nos ombros, os olhos fixos no chão, a jovem sanoma (subgrupo yanomami) enxuga as lágrimas enquanto descreve, em seu idioma, seu limbo emocional.

"Eu vim acompanhando meu filho direto para o hospital (...) A última informação que recebi foi que meu filho veio a óbito. Desde então, nunca mais o vi", conta com voz suave, ritmada, filtrada por uma máscara que deixava descobertos apenas seus olhos, quase fechados.

Não poder realizar o luto com a comunidade "é uma falta de respeito, com certeza afeta bastante o psicológico da mãe", explica Júnior Yanomami, presidente do Conselho de Saúde Indígena Yanomami.

Lucita voltou à sua aldeia na região de Auaris, noroeste do Brasil. O corpo do seu filho continua em um túmulo sem lápide de um cemitério de Boa Vista até que a justiça decida se poderá voltar para casa para que seus familiares possam fazer o ritual fúnebre na comunidade, necessário para superar o luto.

Para Mauricio Yekuana, estas situações resultam de políticas sanitárias que desconsideram a perspectiva indígena. "Eles (o governo) querem impor e obrigar os indígenas a ouvir o que eles querem fazer", disse à AFP.

Yekuana explicou que as famílias decidirão onde receber tratamento à medida que os casos se apresentarem, mas como alternativa, a comunidade lançou uma campanha para comprar seus próprios respiradores e equipamentos e evitar ir à cidade.

"Este é um desafio que amedronta os moradores da região", diz. Enquanto isso, as aldeias enfrentam o coronavírus com medidas como o distanciamento social e equipamentos de proteção.

Um desafio ainda maior com a presidência de Jair Bolsonaro, que vetou trechos de uma lei que obrigariam o governo a facilitar condições sanitárias e de auxílio emergencial a indígenas, alegando que não especificava os recursos orçamentários com os quais seriam concedidos.

Segundo o sistema de saúde indígena, que só atende os indígenas aldeados, há mais de 8.000 casos e 187 falecidos por COVID-19. Quatro óbitos e 186 casos são de yanomamis, a maioria infectados na cidade. Outros três mortos, como o filho de Lucita, estão sob suspeita.

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