Gordo do Baco: ‘Tenho orgulho de participar dessa história de preservação do manancial’ (Mateus Medeiros)
Se há de fato uma força oculta na alma caipiracicabana que a liga aos mistérios das águas, devido aos antepassados canoeiros Tupiguarani que habitaram aos pés do salto, há também os caboclos que redesenham a própria existência na tentativa de dar vazão a esta força ancestral herdada que os perturba. Nem todos têm sucesso. Mas quando isso acontece e o percurso da vida se orienta pela união com a matriz geográfica originária, homem e natureza se encontram e selam um pacto, no mesmo instante em que os mistérios do rio passam a habitar o coração do novo mensageiro da velha tradição. Como se dizia sobre o Império Romano, trata-se de um percurso inevitável quando perseguido, porque todos os caminhos o levam ao rio. E o rio, a partir de então, passa a educar aquele com quem estabeleceu a comunhão eterna.
Ele era um garoto com jeito de rio. Aprendeu as primeiras letras em loca de pedra basáltica, onde capturava cascudos com sucesso ímpar. Mandis e seus ferrões não punham limite aos seus ágeis movimentos de pesca primitiva, conhecimento adquirido em casa de ribeirinho. Paralelamente, aprendeu também a ler e escrever, claro. Chegou inclusive a fazer sucesso como técnico em informática, uma profissão que quase delimitou sua existência. Mas o pano de fundo de seu monitor, além de perturbador, era feito mesmo de água barrenta com borbulho de mandi.
Seu nome de batismo? Luis Fernando Magossi, filho de Persão Magossi e Maria José Jordão Magossi. Neto de Genebra e Vitório Magossi, Rosário e Léa Cófani Jordão. Nascido na pensão da dona Genebra, rua Tiradentes entre a Treze de Maio e Voluntários.
Não há viva alma, no entanto, num raio de 200 quilômetros, que o caracterize hoje com este apelido (seu nome), já que o rigoroso batismo da vida só permite uma forma de chamamento. Uma vez navegante, sempre navegante. "Ninguém sabe o meu nome. Ou melhor, eu me chamo Gordo do Barco. Vivo do rio, no rio e para o rio. Na minha veia não corre sangue, corre água do rio Piracicaba". E mexa com o caboclo para ver. Atiça-lhe um gosto infinito de falar da sua gratidão por ter tido a coragem de se tornar quem é.
"Sou personagem do rio. Tenho orgulho de participar dessa história de preservação do manancial. Sou presidente do Instituto Beira Rio e já ajudei, junto com a AES Tietê, com a soltura de 1,1 milhão de peixes em 10 anos, na esperança de recompor nossa fauna. É minha cota na missão retribuir por tudo aquilo que recebi do rio, pois se trata de uma maravilha criada por Deus, que alimenta toda a cidade e lhe dá o nome. Uma artéria que leva todas as coisas ruins embora e traz energia renovada, sempre. Quando o rio está caudaloso e avermelhado, o piracicabano fica contente, quando o rio está baixo, com a água escura, o piracicabano fica triste. Eu também fico. Mas tenho motivos para estar feliz, porque coisas boas têm acontecido à montante e continuarão acontecendo. Na região do ribeirão do Quilombo, por exemplo, um grande poluidor do nosso rio, está sendo desenvolvido um trabalho intenso para tratamento de esgoto. Com isso, recebemos menos sujeira e, neste ano, com as águas do Piracicaba mais limpas, já pudemos assistir a uma piracema bem mais rica, com quantidade e diversidade gigantesca de peixes".
Em última instância, a história do Gordo do Barco é simples, como tem que ser a história de todo caipira autêntico. Porque se trata de uma história contada que capta apenas a parte aparente. A essência mesma é imensurável e tem a dimensão de um rio sagrado, nobre e purificador, carregado de segredos em cada ponto de parada, em cada margem acidentada. Em cada causo transcorrido, em cada lenda mal contada.
"Na minha casa, todo mundo virou professor. O único que não virou professor fui eu. Escolhi ser aprendiz. O gosto pelo rio também tem origem. Vem, por parte de mãe, do meu avô Rosário Jordão, um apaixonado por caçadas e pescarias. Ele fazia ceva de barata para pegar piracanjuba no Bongue. Cada barata era uma piracanjuba. Naquele tempo, para comer carne tinha que pescar e caçar. Não havia essa facilidade de hoje, de peixe de balcão. A mistura do ribeirinho era o peixe pego direto no rio, fresquinho. Um dia piracamjuba, outro, pintado, ensopado de cabeça de cascudo, o famoso pirão. Quando era tempo de piquira, pescávamos com guarda-chuva e camiseta velha. Aí, a primeira rodada era frita, depois, cuscuz. Mas sempre tinha lambari. Isso há 60 anos, quando eu era molequinho. Meus tios, por parte de pai, também eram bons em pescaria. Então vivi nesse ambiente em que tudo era rancho, barco e rio. Alegria era rio. Festa era rio. Peguei gosto. Matava aula e fugia para o rio. Pescava e preparava o peixe no barranco. Tinha uma frigideira velha escondida em uma pedra do salto, enchia tubos de óleo, sal, pimenta do reino e um cáxara de forfe, tudo bem protegido para que nada fosse prejudicado pela umidade. Era ação planejada e emoção garantida. Pegava o peixe e arrancava a barrigada com a mão. Fazia a fritada no barranco. Lembro do cheiro, do gosto. Disso não se esquece."
Fama nacional
Sua fama de Gordo do Barco extrapolou para a TV. Foi revelado pelo programa Terra da Gente, da Globo, e ganhou espaço na Band, ao lado do violeiro Mazinho Quevedo. "No início eu fazia festa e tinha o Clube do Churrasco. Na tela, fizemos a Estação Viola Brasil e eu era o responsável pelo quadro Panela Veia, em que falava de comida de gordo. Sempre gostei de comida. Foi um sucesso interrompido pela pandemia, mas deve voltar em breve. Luto pelo meu rio e defendo o Brasil, com hino e bandeira. Viajar para mim é água, rio e mar. Mato Grosso e litoral. O Piracicaba é o mais famoso do Brasil. Falado no mundo inteiro, Rio de Lágrimas, de Tião Carreiro e Pardinho, é nosso hino internacional. Minha filha ouviu a música nos EUA e chorou. O rio nosso de cada dia merece respeito. Devemos cuidar dele. Água do rio é do rio. Nada de Cantareira, mas aí já é caso de política".
O passeio de barco pelo Rio Piracicaba demorou 24 anos para ser colocado em prática. "Antonio Mendes de Barros Filho me pediu para levar um grupo de convidados dele para passear na águas do rio. Coloquei todo mundo no meu barco e fomos. Assim se deu e o Mendes me incentivou a levar adiante a idéia. Me inspiraram também Cecílio Elias Netto e Orlando Lovandini. Precisei me tornar piloto da marinha e na primeira gestão Barjas foi dada a largada do que é um sucesso até hoje. De lá para cá (1º de agosto de 2008) eu e Lucimar Regina Custódio, minha esposa e parceira de todas as horas nessa luta, estamos na ativa. Não perco um dia e só não navego quando o rio está extremamente seco ou há algum evento natural que prejudique. Caso contrário, é rio e barco. Nesse período já fiz também 44 resgates de pessoas que corriam risco de morte por afogamento no Rio Piracicaba. Mas faz parte da missão do navegador".
Para facilitar o trabalho do Gordo do Barco, foi construído inclusive um píer, que sofreu um atentado no dia 1 de agosto de 2018. Mas já está em fase avançada uma nova licitação e logo a estrutura estará de volta. "O fato é que as pessoas querem ter essa experiência, não de olhar da terra para o rio, mas de ver o mundo a partir das águas do rio. É quando há a grande mudança de paradigma, de troca de energia com a água, com o tempo e com a vida, como se deu comigo. Um sonho".