Primeira obras de Almeida Júnior: O Derrubador Brasileiro, produzida em 1875 (Reprodução)
Qual o povo originário do Brasil? A pergunta remete naturalmente ao índio, mais especificamente às comunidades encontradas no país quando da chegada dos portugueses. Pelo menos é o que afirma a literatura histórica. Há, no entanto, estudos que consideram a possibilidade de os povos primitivos terem chegados ao território brasileiro vindos de outros lugares. Se isso por ventura ocorreu, não teríamos povos originários do Brasil, mas sim, povos que chegaram primeiro, o que é diferente.
Evidentemente, para alegria dos críticos da colonização portuguesa, se os habitantes vindos de uma remota região africana – passando pela Ásia e atravessando o Estreito de Bering –, como se supõe, não encontraram humanos por aqui, não invadiram terra de ninguém, além dos animais selvagens das florestas, claro. Sendo assim, tornaram-se os primeiros. Uma pergunta enigmática: Quando terra de ninguém se torna terra de alguém? Deixemos de lado esta questão rousseauniana.
Avancemos no tempo e cheguemos em Piracicaba. Novamente literaturas e relatos se fundem para criar um cenário idílico, em que tupi-guaranis correm pelas matas que margeiam o rio Piracicaba. Paiaguás miram o salto da pedreira do Bongue. Tribos e tribos se distribuem pela rica Noiva da Colina, em uma terra sem males. Até que os bandeirantes, aqueles homens rudes e cruéis, de botas longas, espingarda no ombro, passam a disputar território com os silvícolas. Homens com desejo louco por riqueza, capazes de matar e destruir tudo por uma pepita tão sonhada, pelo poder. Novamente a arqueologia, sempre ela, chega para diminuir o ímpeto das almas bondosas e distanciam demasiadamente o nosso horizonte da terra prometida.
O que dizem os arqueólogos
André Prous, por exemplo, no livro O Brasil antes dos brasileiros: a pré-história do nosso país (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006), diz ser unanimidade entre os pesquisadores que os indígenas predominantes no período da chegada dos portugueses ao Brasil, nos séculos XVI e XVII, no percurso das calhas dos rios Tietê, Piracicaba e Corumbataí, eram de etnias Tupi-Guarani. E que seus ancestrais teriam chegado ao território por volta do século V da era cristã.
É possível, ainda, a partir da análise de material lítico, ou seja, fabricados com pedra (ponta de flechas, machados, choppers, espátulas, sovelas, raspadores, entre outros) e cerâmico (igaçabas e utensílios domésticos), observar a existência dos Tupi-Guarani praticamente por quase todo o país. Viviam da pesca e do plantio de mandioca e milho (entre outras culturas de menor quantidade). Por conta da agricultura de coivara, que esgotava a terra em dois ou três anos, tinham que, necessariamente, migrar para outras terras, e por isso, foram ocupando o território brasileiro de norte a sul.
Linguistas trabalham com a hipótese de o tronco Tupi-Guarani ter origem na Bacia Amazônica, a partir da onde se dispersaram pelo país. Ao lado de Prous, Marcel Mano, com o livro Os Campos de Araraquara - Um estudo de história indígena no interior paulista, sugerem que os Tupi-Guarani tenham como origem o tronco Tupi (Leste do país) e do tronco Guarani (Oeste do país), e foram descendo gradativamente, cada qual por uma lateral, se encontrando, estabelecendo convivência ou entrando em conflito com outras tribos. Até que no período da colonização, cercados por portugueses e espanhóis, são empurrados para os Campos de Araraquara.
Olha o que o danado do Prous ousa afirmar ao explicar o motivo da descida dos Tupis e Guaranis: “(…) houve também diferenças de atitudes com relação à natureza. Manejo intenso da floresta amazônica (que perdeu sua virgindade há muitos milênios por obra dos seus ‘primitivos’ habitantes), queima de matas por grupos que preferem o cerrado; guerras para raptar mulheres e crianças, ou para capturar inimigos a serem sacrificados ou incorporados à tribo; conquista de territórios – todos esses fatores podem ter ocorrido, mesmo que de uma forma original, no contexto da história europeia no Brasil, o que não significa que não tenhamos nada a aprender com os indígenas”. Não vamos levar ao extremo como se houvesse aqui a intenção de se comparar níveis bélicos, entre o índio e o homem branco, por favor.
Mas não vamos nos dispersar. A intenção desse texto é demonstrar que há muita invencionice sobre os índios que viveram em Piracicaba. É fato inconteste que o que vemos hoje, como empresas ligadas ao nome Paiaguá, não passa de mera marca de construtora. Até mesmo o bairro Tupi foi dado pela companhia de estrada de ferro, possivelmente para homenagear os silvícolas e não por tê-los no bairro rural. Morumbi é nome de condomínio popular. O que se salva na literatura são os nomes dos rios. Os documentos mais antigos sobre a origem de Piracicaba já trazem os nomes de Corumbataí e Piracicaba.
Está certo que muitas empresas, ao se instalarem em Piracicaba, tiveram que elaborar estudos de impacto ambiental e encontraram muito material lítico e cerâmicos. No bairro rural Santana, por exemplo, o senhor Jair Correr coleciona muito material coletado na vizinhança que revelam a área como sendo um verdadeiro parque arqueológico. Mas isso, até se prove o contrário, demonstra apenas que Piracicaba foi uma grande área de confluência e os índios que por aqui transitaram e se instalaram provisoriamente em alguns pontos.
Sendo assim, não podiam deixar de produzir suas flechas, lanças e utensílios domésticos. Mas essas supostas indústrias líticas são classificadas por tradição, exatamente por não se saber com precisão quando os instrumentos foram produzidos. Não há estudos minuciosos a respeito. Quando falamos em tradição na arqueologia, portanto, não é possível fazer referência direta entre o material encontrado e a tribo que o produziu, apenas fazer analogias entre indústrias líticas.
Mas afinal de contas, o que nos restou dos índios locais? Podemos citar Ypié, literatura história de Marly Therezinha Germano Perecin: A índia Maria dos Anjos (1992) habitante da margem do rio Piracicaba, que veio ao mundo em um cenário autêntico, das origens de Piracicaba, era de família caiapó e foi preada por Salvador Barros de Almeida, evidentemente, um bandeirante português. Ser preada é ser prisioneira. “Descontadas umas poucas onças de ouro cuiabano e pequenas moedas, sobrava-lhe alguma preia de valor incerto no mercado de escravos, cerca de 20 caiapós e 18 perecis. Dezessete... uma cunhã estava emprenhada e decidiu deixá-la na sesmaria de Felipe Cardoso, ao pé do Salto de Piracicaba […]”.
A escritora inicia a obra evocando os seres da terra: “Já houve um tempo em que o sertão de Piracicaba aninhava a todos os seres do rio, do ar e da floresta, inclusive os homens, filhos e criados pela mãe natureza”. Conta que Ypié era o desejo da mãe, por ser mulher, uma vez que há 14 anos não nascia uma mulher no local para ser herdeira da cultura ribeirinha. Numa próxima cena é a vez de Ypié dar à luz um menino. A criança nasceu ao lado da Lagoa das Almas, no lado direito do rio Piracicaba, onde hoje fica o Engenho Central, em sesmaria de Felipe Cardoso:
“- Nome de flor, não! Esta cabeça abençoada há de ser Maria dos Anjos, para que Nosso Senhor Jesus Cristo a proteja em seu Santo Espírito”, diz a mãe.
Está na obra: Era maio de 1760, numa fria noite de chuva, nasceu no antigo tejupar um curumim desta mesma linhagem. Se Ypié tinha cabelos claros e olhos esverdeados, Muni saíra à mãe, com tez queimada. O pai, que só veio conhecê-lo, quase dois anos mais tarde, proibiu-lhe o nome indígena.
Temos no texto acima informações suficientes para observarmos um índio (mestiço), cujo pai branco indica ser português que, por sua estirpe, sente dificuldades para aceitar a relação direta com a indígena, que se configura pela não-aceitação do nome com referência aos antepassados de Ypié. A criança acaba então por receber o nome de Tomás. Marly Perecin deixa claro que em pleno século XVIII a natureza do lugar já havia sido muito modificada, perdendo parte das grandes árvores para o fabrico de barcos. Temos no livro um retrato que a escritora conseguiu elaborar a partir de seus estudos sobre a origem caipira, o que, em últimas instâncias, dá no mínimo uma noção das origens de Piracicaba.
Ela fala também sobre Inhalambé, mãe de Ypié.
“Apesar da idade, caminhava ágil pela mata, nadava e atravessava o leito do Piracicaba sobre a Itaipava do Vaivém saltando com vara o canal. O rio não lhe tinha segredos, conhecia uma a uma as grandes pedras do talvegue, os seus baixios, corredeiras, jupiás e o poção enfeitiçado. O prazer de brincar com as águas, de quem se dizia filha, ela comunicou a Ypié e Tomás”.
“Inhalambé, a cunhã, preparava chás de ervas, tinha uma culinária própria, que usou para cuidar de Ypié, no período do parto, feito por ela mesma, com uso de medicina da floresta. Era versada em agricultura e tear na roca, dominava como ninguém a região do Bongue ao Salto, ensinava Tomás a pescar e a fazer rezas caiapós. Era uma índia preada, que não conseguia imaginar sua vida longe do rio”.
Verificando uma fonte histórica primária, como o recenseamento de 1775, o primeiro feito na povoação, vemos que se confirmam de forma estatística e factual o que na ficção de Marly Perecin (mesmo de base histórica) são percepções do espírito de uma época. O recenseamento lista o nome de 11 índios (chefes de família, homens ou mulheres) carijós e seus familiares, e um índio da etnia tape, todos habitantes da povoação de Santo Antônio de Piracicaba. Embora declarados índios, seus nomes são portugueses: Amaro, Antônio Cardoso, Antônio de Pontes, Antônio Leite Paes, Josefa Leme, Maria de Souza, Manuel de Pontes, Martinho de Pontes, Pelônia, Santiago, Vitorino, Cristóvão da Cunha.
Confirmando Perecin, todos os índios desse censo, realizado em data muito próxima aos acontecimentos do romance da historiadora, dizem não só com seus nomes que estão aculturados (ou “acaboclados”, no dizer de Mario Neme), mas também pelas suas culturas de alimentos: além do milho, tipicamente indígena, há cultivo de arroz, feijão e algodão. Ou seja, desde o século XVIII não temos mais índio em Piracicaba. Eles foram expulsos, aculturados, exterminados, enfim. O que temos de fato é o caboclo. É o caboclo nosso homem histórico, mais próximo da natureza primitiva, da terra sem males. Só que nasceu manejando garrucha, era bravo e arisco. Porque a circunstância o fazia assim. O verdadeiro Peri de Piracicaba se chamaria Tomás.
Este texto é um fragmento do estudo desenvolvido por este jornalista com o historiador e crítico de arte Fábio San Juan para o Sesc Piracicaba. Trata-se, sem dúvida, de um texto controverso. Mas foi escrito mesmo para rearranjar os estudos mais conhecidos na cidade, que se fundamentam basicamente em literatura e história oral. A história real, infelizmente, é um pouco mais árida do que supomos.