Tese de Sandra Ciocci resgata uma história que desperta opiniões (Carlos Sousa Ramos/AAN)
Professora de música, ao defender a tese de doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Sandra Ciocci investiu em matéria que lhe é cara e a uniu ao cinema. Brasileiro, diga-se, porque o americano e o europeu têm bibliografia aos montes, justifica. Defendida e aprovada em novembro, e recomendada à editora da universidade para publicação, 'Canções e Cantores nos Filmes da Atlântida' é um relato histórico e afetivo de uma época em que o cinema do País fez frente à indústria hollywoodiana nas bilheterias. Copiava o original, mas o traduzia para uma linguagem tipicamente nacional. Moacyr Fenelon e José Carlos Burle fundaram a Companhia Atlântida Cinematográfica em 1942 (sobreviveu até 1962) de olho na porcentagem de obrigatoriedade de exibição de filmes brasileiros nos cinemas. Contudo, a precariedade era marcante. A câmera era do cinema mudo com aparelhos de gravação de rádio. E não havia equipamento para conjugar fala, música e efeitos sonoros ao mesmo tempo. “Mesmo com estrutura modesta, concorreu com os americanos”, afirma a autora, casada com o prefeito de Campinas, Jonas Donizette Ferreira. Com a entrada de Severiano Ribeiro como principal acionista, chegaram também equipamentos novos a partir de 1953 e revolucionaram a produção. A tese resgata uma história que desperta opiniões contraditórias, pois os filmes da Atlântida eram populares e conquistaram grandes plateias; porém, a crítica lhes torcia o nariz. Sandra desconhece quando o termo chanchada (usado pejorativamente) passou a ser adotado. Sabe, no entanto, que ele nasceu carregado de preconceito. E não só por críticos e intelectuais, mas pelos integrantes do Cinema Novo. Carlos Manga (1928-2015), uma das fontes primárias de Sandra na elaboração da tese repetiu inúmeras vezes que enquanto o intelectualizado Cinema Novo penava para conquistar público, os da Atlântida lotavam as salas. “Manga até gostava de ser chamado de ‘Rei da Chanchada’”. Mas guardou mágoa e, ao ser procurado por Sandra, recebeu-a desconfiado. Aos poucos, descobriu que era uma abordagem diferente com pesquisa séria e colaborou muito com o trabalho. Ao fim do primeiro encontro, disse: “Que dizer que não sou tão ruim quanto falavam?” Não por acaso, o diretor está entre as três pessoas a quem a tese é dedicada. Manga é o ponto chave da mudança na história da Companhia. No primeiro filme ('Carnaval Atlântida', 1953), o diretor tinha 23 anos; Sandra conta uma deliciosa história a respeito. Substituiu José Carlos Burle, que deixou a produção por causa de desentendimento com Oscarito, mas assumiu com autoridade o posto, apesar da desconfiança sobre a capacidade dele. E logo de cara foi questionado pela atriz e bailarina cubana, Maria Antonieta Pons, que o desafiou insistentemente a dizer como ela deveria dançar o número que havia ensaiado em cima de uma mesa. Ele subiu na mesa e fez a coreografia, imitando os gestos da atriz. “Quer saber como? É assim”. Além de ter influenciado Severiano Ribeiro a investir em equipamentos, trouxe o irmão mais novo de Radamés Gnattali, Alexandre, para trabalhar com ele e imprimiu um novo jeito de inserir a música no filme. Para ele, o uso tinha de se justificar em termos narrativos ou dramatúrgicos. Um exemplo foi a música que Billy Blanco compôs para 'Garotas e Samba' (1957). “A letra ocupa o lugar do diálogo, pois, em pouco mais de um minuto, ele faz a apresentação das três personagens protagonistas”. Sandra acha que Manga foi valorizado ao longo dos anos, mas não o quanto merecia. Ressalta também que a Atlântida ficou conhecida pela chanchada; porém, produziu muito mais que isso. Além das comédias, realizou dramas de alto teor social como 'Também Somos Irmãos' (W. Macedo, 1949), que levanta a problemática branco/negro, pobre/rico. A Atlântida, compara, seria algo como a MTV para a geração dos anos 1990/2000. O público conhecia o artista pelo rádio e pelas fotos. E o cinema permitia vê-lo e saber se ele dançava, como se comportava em cena etc. Só o filme, diz ela, permitia esse contato, ainda mais contando uma história — algo que o clipe fez posteriormente.